A Oficina de Música Curitiba, que está na sua segunda e última semana de atividades, é bem diversa e maior que a primeira edição, em 1983. Além do fato de a atual ser inteiramente on-line – consequência das exigências sanitárias de controle do novo coronavírus – outras características também mudaram ao longo dessas quase quatro décadas.
Os espaços dedicados a aulas, concertos e shows se multiplicaram, o universo de alunos foi ampliado de músicos profissionais para a comunidade e a plateia passou a ser um dos seus mais importantes componentes.
Um dos mais longevos eventos do calendário nacional do segmento, a Oficina de Música começou a ser gestada no fim de 1982, a partir de uma conversa informal entre a mentora da Camerata Antiqua de Curitiba (CAC), Ingrid Seraphim, e a então diretora executiva da Fundação Cultural de Curitiba (FCC), Lúcia Camargo, falecida em julho passado.
Saudosas dos antigos festivais e cursos internacionais de música que movimentavam a cidade nas décadas de 60 e 70, sempre em janeiro, elas tiveram a ideia de trazer de volta o espírito daqueles eventos. No formato de oficinas, a princípio eles seriam voltados para a música antiga e os integrantes da CAC e teriam os alunos como centro das atenções. Além de ter aulas, eles demonstrariam o resultado do aprendizado por meio de performances abertas aos demais participantes do evento.
Rigor técnico
Assim, em 3 de janeiro de 1983, no Solar do Barão, começava a Oficina de Música I. O evento foi organizado pela FCC e teve o apoio da Prefeitura de Curitiba, além dos primeiros patrocinadores: o centro cultural de língua alemã Instituto Göethe e a editora e distribuidora musical Schott & Musas.
Foram pouco mais de dez cursos e cerca de cem alunos inscritos nos primeiros dias de anúncio do evento – número expressivo para a época e rapidez com que o novo festival ganhou forma. Já a edição deste ano – que também é organizada pelo Instituto Curitiba de Arte e Cultura (Icac) – está promovendo 73 cursos e trazendo 177 professores, dos quais 33 são estrangeiros.
A qualidade dos professores convidados ajudou no resultado da oficina pioneira. Nomes como Hélder Parente (flauta doce e música antiga), Hans-Joachin Koellreutter (estética e composição coletiva), Myrna Herzog Feldman (viola da gamba), Sebastião Tapajós (violão), Roberto de Regina (cravo), Paulo Bosísio (música de câmara, violoncelo e viola) e a jovem Mara Campos (regência de coral), que até hoje participa do evento, estavam entre eles.
“Cheguei pelas mãos de Henrique Morozowicz, que me convidou para dar aula na 1ª Oficina quando estive em Curitiba para um Encontro de Coros Universitários. Eu, que já conhecia a obra dele, a partir daí tive a honra de me tornar sua amiga e, de tanto que vou a essa cidade, uma paulistana praticamente curitibana”, conta Mara Campos.
Entre instrumentos, baldes e vassouras
As atividades da edição pioneira aconteceram na Sala da Música e nos espaços externos do Solar, que ainda não estava totalmente recuperado para funcionar como espaço cultural. Tanto assim que precisou ser organizado com a ajuda dos próprios músicos da cidade e participantes dos cursos. Entre eles estava a jovem flautista e integrante do Conjunto Renascentista Janete Andrade.
“Muitos de nós varremos, lavamos e fizemos o que foi preciso para deixar o Solar em ordem para a primeira edição da Oficina. Era muita vontade de fazê-la acontecer”, recorda Janete, hoje coordenadora-geral da Oficina de Música de Curitiba.
O encerramento aconteceu na Catedral de Curitiba, no dia 15 de janeiro de 1983, com um concerto para coro e orquestra.
“Foi muito engraçado porque tivemos, por exemplo, autoridades tocando chocalho na Sinfonia dos Brinquedos”, conta Janete, referindo-se à composição de autoria imprecisa e que mistura orquestra sinfônica com brinquedos sonoros. O então prefeito Jaime Lerner e a incentivadora da Oficina, Lúcia Camargo, estiveram entre os convidados a participar da atividade, cuja proposta era fazer personalidades que nunca estudaram música acompanhassem a orquestra. Detalhes desta performance estão no livro Curitiba & Música, nos Acordes da Fundação Cultural, das historiadoras Aparecida Vaz da Silva Bahls e Lilia Maria da Silva.
Cresce o evento, o público acompanha
O interesse despertado pela primeira edição logo encaminhou os preparativos da seguinte, que começou a dar cada vez mais espaço à MPB. Foi ideia de Ingrid Seraphim, musicista de formação erudita, convidar o maestro Gaya para lecionar Ritmos Brasileiros (pesquisa, execução e análise). Padre Penalva também participou da II Oficina, ministrando o curso de Música Contemporânea e Composição.
A essa altura, a mentora do evento contou com o suporte da filha e já musicista profissional Elisabeth Seraphim Prosser no processo de organização, além de professora. Anos mais tarde, no final da década de 90, ela foi uma das idealizadoras dos Simpósios Latino-americanos de Musicologia – frutos da percepção dos organizadores sobre a crescente participação de alunos de outros países latino-americanos e da diversidade sonora e cultural que eles traziam para o evento.
A variedade de gêneros e público – vindo de diversos estados brasileiros e a seguir da América Latina e da Europa – desde cedo ficou evidente na Oficina, que nasceu com jeito de erudita por causa da configuração inicial.
“Sempre houve muita clareza sobre as origens dos alunos, de suas linguagens musicais e procedências, e como isso deveria estar refletido no que a Oficina deveria oferecer”, observa Elisabeth Prosser.
Guarda-chuva democrático e transformador
A musicista destaca que, além de evento técnico, cada vez mais a Oficina se torna um grande guarda-chuva.
“É sob ele que se aloja, entre tantas outras iniciativas, um ambiente de formação de músicos que vão ser professores e, desta forma, agentes de inclusão social por meio da música. Não são raros os que se tornam agentes de promoção social por meio da sua arte”, frisa Elisabeth. Ela se refere aos músicos que, formados e reenergizados nas Oficinas, escolhem dar aulas em projetos sociais.
A maestrina Mara Campos concorda com essa ideia e credita às Oficinas de Música de Curitiba o surgimento de propostas bem-sucedidas como os projetos Nosso Canto e MusicaR, de musicalização de adultos e de crianças e adolescentes respectivamente, a partir de cursos oferecidos nas Administrações Regionais.
“É o espírito que norteia o evento desde o início, é o seu olhar social, inclusivo, trazendo o público para aplaudir um espetáculo – muitas vezes – pela primeira vez. Isso é transformador”, argumenta.
Acolhendo as diferenças entre a música e os alunos
Além dos alunos, outro cuidado cultivado durante os anos foi com o público. “É interesse observar como a Oficina manteve o foco inicial, de investir no aprimoramento das carreiras dos músicos e, ao mesmo tempo, se abrir cada vez mais para o cidadão comum, seja por meio de cursos e da formação de plateia”, destaca Mara Campos. Desde cedo a Oficina mostrou essa qualidade de não se limitar apenas às salas de concerto e sair para outros espaços, abrindo-se ao público”, completa.
Cantores e instrumentistas novos e mais experimentados que se dedicam a outros gêneros musicais também têm o seu espaço na Oficina, em horários exclusivos de apresentações. É o caso das performances com hora marcada, em diferentes horários, do Circuito Off e da Jazztronômica.
O meio ambiente também foi contemplado, com a inclusão da Oficina Verde. E a cada ano, um grande nome da música passou a ser homenageado. Este ano é o argentino Astor Piazzolla. Em 2020, Beethoven.
Mais recentemente, a Oficina vem se pautando por levar o aprendizado da música para quem percebe e aprende música de outras formas. É o caso dos cegos, contemplados com cursos e performances de palco a partir da edição anterior, e dos surdos e dos autistas, que em 2021 passam a fazer parte da grade de programação coordenada pelo violinista e professor com baixa visão Luiz Amorim.