No dia 20 de fevereiro, representantes da Polícia Militar do Paraná, da Secretaria Municipal de Saúde, do Conselho Municipal da Diversidade Sexual e da Defensoria Pública do Paraná, ao ouvirem depoimentos de discriminação durante audiência pública realizada pela Câmara Municipal de Curitiba (CMC), recomendaram que as vítimas de transfobia formalizem as denúncias desses casos junto ao Poder Público. A atividade foi organizada pela vereadora Giorgia Prates – Mandata Preta (PT) e reuniu lideranças trans na CMC para discutir o enfrentamento da transfobia.
“Não podemos compactuar com o preconceito institucional. Nosso papel é promover os direitos de todas as pessoas”, afirmou a capitã Carolina Zancan, que representou a PM-PR na audiência pública. Após ouvir relatos de situações de suposto abuso policial em abordagens da corporação em Curitiba, ela recomendou que as vítimas, ou as instituições de defesa de direitos, façam a denúncia desses casos à Corregedoria da Polícia Militar, porque o objetivo da PM-PR é “que as agressões não ocorram”. Ela destacou que, em 2024, o Boletim de Ocorrência Unificado ganhou o campo do nome social, para melhorar as estatísticas de discriminação no Paraná.
Diante de depoimentos de discriminação durante atendimentos no Sistema Único de Saúde (SUS) de Curitiba, as servidoras públicas da Secretaria Municipal de Saúde (SMS), Angela Leite Mendes e Roberta Elizeire da Silva Vicentine, afirmaram que as denúncias pela Central 156 e à Ouvidoria da SMS são importantes para exigir respostas dos hospitais conveniados, que podem ser advertidos e até penalizados conforme a gravidade dos casos. “Nossas diretrizes são para fazer o uso do nome social”, afirmaram, reforçando a importância das denúncias para o diagnóstico das situações e tomada de decisão dentro do Executivo.
“Por mais que pareça que [a denúncia] não vai funcionar, as Ouvidorias são cobradas a dar respostas. A inclusão no Boletim de Ocorrência Unificado dos campos ‘nome social’, ‘identidade de gênero’ e ‘orientação sexual’ são avanços para gerar dados da violência. É preciso ir até as Ouvidorias”, insistiu Karollyne Nascimento, primeira mulher trans a exercer a função de ouvidora-chefe da Defensoria Pública do Paraná. Antes, no início da audiência pública, ela havia discursado sobre a importância da união dentro do movimento LGBT+ para o enfrentamento do preconceito em Curitiba. As falas foram referendadas por Grazielle Tagliamento, do Conselho Municipal de Diversidade Sexual, que pediu o registro dos casos para que o órgão faça o acompanhamento das denúncias.
Caso da Selvática será judicializado, informa artista e sindicato da classe
Na audiência pública, o presidente do Sindicato dos Artistas e Técnicos do Paraná (Sated), Adriano Esturilho, informou que a entidade está dando apoio jurídico às vítimas de ataques nas redes sociais. “Não é um debate só da Selvática. Vemos claramente que é uma estratégia [de mídia] de ataque [vinda] de grupos específicos, que provoca dano irreparável aos artistas atacados, com o objetivo de aprovar projetos de lei para impedir que artistas tenham acesso à pouca política de cultura que nós temos”, disse Esturilho.
“Desde a campanha [eleitoral] do ano passado, a gente tem tido nosso trabalho, nossos corpos, nossas imagens, nossas obras utilizadas como estratégia para inflamar a população contra a população trans. Esses vídeos são a ponta do iceberg de um processo muito mais complexo do que eles, mas pra gente revelam uma tentativa perversa e muito bem articulada de criminalizar as nossas existências. Existe uma transfobia explícita no discurso, no jeito que essa narrativa acontece. Eu tenho sido ameaçada diariamente”, relatou a artista Princesa Marinelli, da companhia Selvática, na audiência pública.
Pró-reitora anuncia estudo para política afirmativa trans na UFPR
“Estamos elaborando uma Nota Técnica para que editais que distribuem bolsas de estudo sejam afirmativos [na UFPR]”, anunciou Megg Rayara, pró-reitora de Ações Afirmativas e Equidade da Universidade Federal do Paraná (UFPR). A ideia seria que situações de vulnerabilidade fossem utilizadas, conforme a situação, como cota ou como critério de desempate, combinando critérios sociais, de raça, de gênero e de identidade. “É preciso uma estratégia de permanência, com moradia e bolsa de estudos”, asseverou Rayara, que é mulher travesti e doutora em Educação.
Na esteira da pró-reitora da UFPR, que disse ser importante discutir cotas trans em cursos de graduação, Adriano Esturilho, do Sated, disse que os editais da Cultura precisam ser adaptados a essa realidade de discriminação da população trans em Curitiba. Ele deu o exemplo da artista Trava da Fronteira, cujo projeto cultural foi o segundo mais bem avaliado pelo comitê do Mecenato, mas que tem enfrentado dificuldade na captação de apoios.
“A extrema direita está nos transformando em inimigos”
“Estamos ocupando espaços, conquistando direitos, e isso tem incomodado a heterocisnormatividade. Pessoas cis, além de ocuparem um lugar de privilégio por simplesmente serem pessoas cis, não nos dão oportunidades e a todo o momento insistem em disputar espaço conosco e fecham a única porta que conseguimos abrir, com décadas de esforço, com muita ética e determinação. A extrema-direita está nos transformando em inimigos e a nós são imputadas coisas horríveis. Querem controlar pelo medo”, analisou Gisele Szmidt, da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) e representante do Paraná na Comissão de Diversidade Sexual e Gênero da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).
Para Rafaelly Wiest, representante da Rede Trans Brasil e presidente do Grupo Dignidade, não se trata mais de reduzir o preconceito a uma “opinião”, porque “transfobia é crime e não vamos ser coniventes”. Ela relatou o histórico de articulação das entidades, que anualmente participam de audiências públicas na Câmara de Curitiba e na Assembleia Legislativa do Paraná, defendendo que “não entrarão no jogo deles”, que só se pede respeito e que o encaminhamento é “entrar com processos” contra os casos de discriminação. Liza Minelli, do Grupo Esperança, também contou parte da história de conquistas do movimento social, que ficou registrada na gravação da transmissão ao vivo.
“A primeira coisa que tiram das pessoas trans é o direito ao amor próprio e de ser amado. Daí você acredita que as outras pessoas têm o direito de fazer o que quiser com você”, disse Fabian Algarte da Silva, do Instituto Brasileiro de Transmasculinidades (Ibrat). “Um dos momentos mais felizes que a gente tem é aquele momento no espelho em que você fala pela primeira vez, para você, o seu nome. É lindo. E três segundos depois você está em pânico com o que vai acontecer. A militância é para que seja o contrário. Garantir que esses três segundos sejam décadas. Os aliados não precisam interceder junto às pessoas trans, mas pelas pessoas trans, com as pessoas cis”, pediu.
A íntegra das participações na audiência pública promovida por Giorgia Prates, que contou também com a participação da vereadora Camilla Gonda (PSB), de Ana Lucia, do coletivo Mães pela Diversidade, de Cibele Castro, do Centro de Orientação e Aconselhamento (COA) da Secretaria Municipal de Saúde (SMS), e de diversas pessoas que utilizaram o direito à fala durante a audiência pública, pode ser conferida no canal da CMC no YouTube. O registro fotográfico está disponível no álbum do evento na rede Flickr.