Se “sujeito é o que se nomeia”, como definiu o psicanalista francês Jacques Lacan (1901-1981) ao associar o nome próprio à singularidade do ser humano, a identidade urbana também se constrói a partir da nomeação das ruas, praças e demais espaços públicos da cidade. Imagine, na capital paranaense do século 19, caminhar pelas ruas do Fogo, rebatizada como São Francisco, ou da Liberdade, que hoje recebe o nome de Barão do Rio Branco e abriga a Câmara Municipal de Curitiba (CMC).
Antigamente, as ruas, travessas, becos e largos (hoje chamados de praças) eram conhecidas pelo nome de seu morador mais ilustre, características do local ou algum fato marcante. A rua Riachuelo, por exemplo, de acordo com as “plantas de Curityba” dos anos de 1857 e 1963, era a rua da Carioca, uma referência à fonte d’água (ou carioca) construída naquele local. Com o passar do tempo, as denominações passaram a homenagear datas e personalidades históricas.
O primeiro “endereço feminino” da capital do Paraná, segundo a coletânea de mapas históricos do Instituto de Pesquisa e Planejamento de Curitiba (Ippuc), só aparece no documento de 1894. Trata-se do Largo Thereza Christina, batizado em homenagem à esposa de Dom Pedro II e imperatriz consorte do Brasil até a Proclamação da República, em 1889. Antes disso chamado de Largo Lobo de Moura, o local deu origem à praça Santos Andrade, localizada no Centro da capital do Paraná.
Hoje, os nomes de mulheres estão presentes em cerca de 14% dos logradouros públicos do Município de Curitiba. Ou seja, segundo dados do Ippuc de janeiro passado, elas emprestam o nome a 1.407 dos 9.998 logradouros da capital (a maior parte do total são ruas, com 8.688 ocorrências). O conceito de logradouro é mais abrangente e reúne, além das vias públicas, os demais espaços de uso comum da população, como praças, parques, bosques, jardinetes, pontes e viadutos.
Se considerados apenas os logradouros que correspondem a endereços da cidade, isto é, as ruas, avenidas, travessas, alamedas e estradas, a presença feminina entre as denominações é quase a mesma, de 13,8%. Ou seja, das 9.123 vias públicas de Curitiba, 1.263 homenageiam mulheres, sendo 1.203 ruas, 10 avenidas, 47 travessas e 3 alamedas.
O levantamento faz parte do projeto “Entre Ruas & Memórias”, que busca resgatar a identidade de Curitiba por meio dos nomes de seus logradouros públicos. A iniciativa é desenvolvida a partir do convênio entre a Câmara de Curitiba e a Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), firmado no fim de 2023. A parceria, no ano passado, já resultou na publicação de trabalhos sobre as sedes do Legislativo e a participação popular na política.
Você conhece a história da rua em que mora?
Para marcar o Dia Internacional da Mulher, celebrado neste sábado (8), a Câmara de Curitiba divulga o primeiro recorte do projeto “Entre Ruas & Memórias”, com um levantamento sobre os nomes femininos das vias públicas da cidade. O objetivo é construir um banco de dados com as biografias de personalidades e anônimos que ajudam a construir a identidade urbana da capital paranaense.
Além de resgatar a trajetória dessas pessoas, o projeto mapeia o tipo de logradouro, localização, extensão aproximada e a lei que determinou a nomenclatura. Iniciado em janeiro, o trabalho é conduzido por três pesquisadores-bolsistas do curso de bacharelado em História da PUCPR, Fabricio Rocha, Natalia Garcia Krainski e Victoria Regina da Silva, com o apoio da Diretoria de Comunicação Social, da Escola do Legislativo Maria Olympia Carneiro Mochel e da Seção de Arquivo e Documentação Histórica da CMC.
O projeto “Entre Ruas & Memórias” faz parte do programa Nossa Memória, dedicado ao resgate da história da Câmara Municipal e da cidade de Curitiba. Diretora de Comunicação Social da Câmara de Curitiba, a jornalista Patricia Tressoldi reforça a importância da iniciativa, criada, em 2009, por servidores da Casa. “É um resgate histórico que vai além de curiosidades e acontecimentos inusitados. Por meio de documentos, relatos e fatos marcantes, mostramos que a Câmara Municipal de Curitiba sempre esteve diretamente ligada às decisões que impactaram o desenvolvimento da cidade. Ao revisitar o passado, destacamos o papel fundamental do Legislativo na construção da Curitiba que conhecemos hoje, valorizando a memória da instituição e a sua contribuição para o futuro da sociedade”, finaliza ela.
A pesquisa tem como embrião o “Rua & História”, lançado, no fim de 2014, dentro do programa Nosso Memória. Na época, a cidade possuía 9.248 mil logradouros e o banco de dados já reúne 50 biografias. A página fechou o ano de 2024 entre as 20 mais acessadas do site da instituição, com mais de 10 mil “cliques”.
Qual é a maior e a menor rua de Curitiba com nomes de mulheres?
Para o recorte inicial do projeto “Entre Ruas & Memórias”, os pesquisadores-bolsistas foram atrás da história de 20 das mulheres que emprestam seus nomes às vias públicas de Curitiba. A linha de corte são as ruas mais e menos extensas, com denominações femininas, de cada uma das 10 administrações regionais da cidade. “Iniciamos a pesquisa mapeando as ruas em geral, e o que nos chamou a atenção foi a baixa porcentagem de logradouros femininos, levando ao questionamento de quem são essas mulheres”, explica Victoria, estudante do 4º período do curso de História da PUCPR.
O trabalho revela nomes históricos, como o da revolucionária Anita Garibaldi (1821-1849). Com cerca de 8 quilômetros de extensão, a avenida batizada em sua homenagem, em 1932, a pedido da população, é a mais extensa não só da Regional Boa Vista, mas também de Curitiba. Saindo da região nordeste para o sul da capital, a menor rua homenageia a dona de casa Maria Aparecida Cardoso da Silva (1950-2007). Localizada na Regional Fazendinha/Portão, ela mede aproximadamente 23 metros (veja, abaixo, a relação completa).
As biografias, continua Victoria, também revelam a trajetória de outras figuras históricas, como Anne Frank e Princesa Izabel, e de personalidades locais, a exemplo da artista de rua Maria do Cavaquinho. No entanto, a maior parte das mulheres são anônimas, homenageadas, principalmente, pelos trabalhos sociais. O trabalho, analisa ela, “irá certamente viabilizar mais pesquisas e, principalmente, servir para um maior esclarecimento para os moradores ou até mesmo transeuntes sobre a história daquele endereço”.
Além das justificativas dos projetos de lei, os estudantes lançaram mão de outras fontes documentais, como jornais do século passado. Os processos legislativos mais antigos, esclarece Natalia, ficam na Seção de Arquivo e Documentação Histórica da Câmara de Curitiba. No caso das denominações mais recentes, os documentos estão disponíveis no portal da instituição, por meio do Sistema de Proposições Legislativas (SPL).
“Além deles, consultamos outras fontes, como sites que eventualmente tenham informações relevantes a respeito das mulheres que nomeiam as ruas da cidade, como o FamilySearch, e jornais da época em que essas mulheres viveram, por meio da Hemeroteca Digital [da Biblioteca Nacional Digital]”, prossegue Natalia Garcia Krainski, que cursa o 6º período da graduação.
“A maior dificuldade, certamente, foi a escassez de dados sobre algumas das personalidades que pesquisamos. A incerteza quanto ao gênero de algumas denominações também foi um empecilho, visto que acabamos por deixar de lado algumas ruas cujos nomes não conseguimos confirmar se eram, ou não, femininos”, pondera a pesquisadora-bolsista.
Fabricio Rocha, que também é aluno do 6º período, acrescenta que “dentro do campo de estudo da História, hoje se faz importante o uso de diferentes fontes de estudo, na intenção de enriquecer o debate histórico e social”. “Nesse sentido, a utilização de elementos presentes no dia a dia dos moradores da cidade, tais como os nomes nas placas de identificação das ruas e demais logradouros, auxilia na conscientização acerca de acontecimentos vividos na capital. Com a continuação da pesquisa, novas histórias são reveladas, junto de possíveis oportunidades de estudo para futuros pesquisadores que se interessarem sobre a temática”, adianta.
Confira, na tabela abaixo, a maior e a menor rua de cada regional. As biografias das homenageadas e a ficha técnica dos logradouros podem ser consultados, por ordem alfabética, neste link.
Administração regional | Maior rua | Menor rua |
---|---|---|
Bairro Novo | Celeste Tortato Gabardo | Izelite Sardenberg Bassetti |
Boa Vista | Anita Garibaldi | Leony Margarida Machado |
Boqueirão | Anne Frank | Leonora Corrêa Skarpec |
Cajuru | Professora Olga Balster |
Irmã Lucila Buss |
CIC | Darcy Vargas | Maria Milchin |
Fazendinha/Portão | Daisy Luci Berno |
Maria Aparecida Cardoso da Silva |
Matriz | Princesa Izabel | Paulina Taborda Ribas de Camargo |
Pinheirinho | Fátima Bark | Vanessa Natel de Camargo |
Santa Felicidade | Wanda Wolf | Glória Regina Chaiber |
Tatuquara | Aretuza Machado de Andrade | Maria do Cavaquinho |
Como são escolhidos os nomes das ruas de Curitiba?
A denominação de ruas e demais logradouros da cidade, entre outras matérias urbanísticas, é uma das 36 funções dos vereadores da Câmara de Curitiba. “Além de legislar sobre outras questões e fiscalizar o Executivo, os vereadores têm a responsabilidade de propor as denominações de bens públicos. Isso significa que eles podem apresentar projetos de lei para nomear ruas, avenidas, praças, escolas, postos de saúde e outros espaços públicos do Município. Dessa forma, desempenham um papel essencial na construção da identidade urbana, valorizando a história, a cultura e as personalidades que marcaram a comunidade”, explica a diretora da Escola do Legislativo, Débora Reis.
O processo de denominação de um bem público, acrescenta a servidora da Câmara de Curitiba, vai muito além de uma simples escolha de nomes. “O Legislativo Municipal tem a responsabilidade de garantir que a denominação dos espaços públicos reflita a memória coletiva, homenageie personalidades relevantes e mantenha um vínculo com a identidade local. Além disso, esse processo contribui diretamente para o planejamento urbano, organizando a cidade de maneira mais eficiente e acessível.”
A lei federal 6.454/1977 proíbe, em todo o Brasil, atribuir a bem público o nome de pessoa viva ou que tenha se notabilizado pela defesa ou exploração de mão de obra escrava. As propostas legislativas de denominação também precisam obedecer aos critérios estabelecidos pela lei municipal 8.670/1995.
Na nomenclatura ou denominação, conforme a normativa local, os bens públicos são identificados com nomes de pessoas ou referências a fatos, datas, lugares, animais, vegetais e coisas. Além de pessoas vivas, são proibidos os nomes repetidos e muito extensos. As denominações “devem guardar, tanto quanto possível, as tradições locais e lembrar figuras, fatos e datas representativas da história local, nacional ou geral”.
Outras regras são que as indicações “não devem lembrar fatos incompatíveis com o espírito de fraternidade universal” e nem fazer menção a pessoas jurídicas, associações, crenças religiosas, partidos políticos ou nomes de produtos. A legislação determina que fatos históricos precisam ter acontecido há pelo menos 25 anos”. Desde 2021, a lei de Curitiba proíbe a nomenclatura de logradouros públicos “em homenagem a pessoas que tenham praticado atos de lesa-humanidade, tortura, exploração do trabalho escravo ou infantil ou violação dos direitos humanos, com sentença transitada em julgado”.
As denominações podem ser especificadas, quando o autor aponta o código do logradouro que deverá receber o nome proposto, ou genéricas. Os vereadores de Curitiba têm uma cota anual de até cinco projetos de lei para propostas de denominação de bens públicos municipais. Depois de receber a instrução da Procuradoria Jurídica (Projuris), o projeto de lei passa pela análise das comissões de Constituição e Justiça (CCJ) e de Educação, Turismo, Cultura, Esporte e Lazer.
Caso avance pelos colegiados temáticos, a iniciativa pode ser incluída na ordem do dia para os dois turnos de votação em plenário. Se aprovada e sancionada pelo prefeito, cabe ao Executivo, por meio da Secretaria Municipal do Urbanismo (SMU), implementar a denominação e fazer os encaminhamentos internos para as atualizações nos registros municipais, como nos mapas da cidade.
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